O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), vetou parcialmente na quinta-feira (11/4) o projeto de lei que acaba com a saída temporária de detentos do regime semiaberto, a chamada saidinha.
O petista derrubou a proibição, aprovada anteriormente pelos parlamentares, à saída temporária para que os detentos visitem a família e participem de atividades sociais. Ou seja, os presos podem continuar com esse benefício.
Entretanto, Lula manteve, conforme projeto do Congresso, a exigência do uso de tornozeleira eletrônica para que o preso saia temporariamente.
Condenados por crimes hediondos, com violência ou grave ameaça, também não poderão usufruir mais da saidinha, algo também proposto pelos parlamentares e acatado pelo governo.
Mesmo com o veto parcial de Lula, o Congresso pode derrubar sua decisão em votação, se tiver maioria absoluta.
Considerando votações anteriores, o cenário é favorável para os parlamentares. O texto parcialmente vetado por Lula havia sido aprovado no Senado com 62 votos favoráveis, dois contra e uma abstenção; e na Câmara, com 311 votos favoráveis e 98 contrários.
Outro trecho do projeto, sobre a exigência de exame criminológico para a progressão de regime (por exemplo do fechado para o semiaberto), foi acatado pelo governo.
O fim da saidinha era considerado um nó difícil de ser desatado por Lula.
Por um lado, o presidente vinha sendo pressionado por parte de sua base para vetar o projeto.
Mas a proposta foi aprovada em um momento em que a violência e a segurança pública se tornaram um vespeiro para o governo e uma grande fonte de preocupação para a população. O veto era uma medida considerada impopular e indesejável quando as pesquisas apontam uma queda na aprovação de Lula.
O próprio PT liberou sua base para votar como quisesse no Congresso. Lula tinha 15 dias úteis a partir da aprovação no Congresso, que aconteceu em março, para apreciar o projeto.
Mas como funcionava a saidinha, o que muda com o novo texto e o que ainda pode ser alterado?
Como fica a saidinha após sanção de Lula?
Embora os vetos de Lula a alguns trechos ainda possam ser derrubados pelo Congresso, na situação atual, os detentos do semiaberto ainda poderão visitar a família — no projeto do Congresso, a saída temporária era prevista apenas para fins educacionais e de trabalho.
Em entrevista coletiva na quinta (11/4), o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, disse que o governo avaliou que a proibição à visita às famílias poderia ser considerada inconstitucional.
“Entendemos que a proibição de visita às famílias dos presos que já se encontram no regime semiaberto atenta contra valores fundamentais da Constituição, como o princípio da dignidade da pessoa humana, o princípio da individualização da pena e a obrigação do Estado de proteger a família”, explicou Lewandowski, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
“Preservamos todas as outras restrições estabelecidas pelo Congresso”, frisou.
O projeto escrito por parlamentares incluiu no mesmo item a proibição à saidinha para visita à família e para atividades sociais.
Mesmo que só priorizasse manter a possibilidade de visita à família, o governo argumentou que a participação em atividades sociais acabou permanecendo porque “a Constituição proíbe veto parcial em um mesmo dispositivo”.
Normalmente, desde a lei anterior, as saídas temporárias são feitas nos meses em que caem os feriados de Páscoa, Dia das Mães, Dia dos Pais, Finados e Natal/Ano Novo.
Lewandowski defendeu a importância das visitas dos presos aos parentes nessas datas, porque a família é um “valor do ponto de vista cristão”.
O ministro destacou que, tal como na lei anterior, a saída temporária continua dependendo de uma decisão do juiz. São os diretores dos presídios que indicam à Justiça quem está apto a receber o benefício.
“As saídas temporárias, repito, estarão sempre a critério do juiz da execução ou dos juízes corregedores”, disse.
O governo também manteve a proibição à saidinha para aqueles que cometeram crimes hediondos com violência ou grave ameaça, como estupro, homicídio, latrocínio e tráfico de drogas.
Lewandowski apontou que o governo acatou a decisão do Congresso quanto a isso, mesmo que essa seja uma “medida drástica”.
Conforme texto do Congresso também mantido por Lula, presos que saírem temporariamente para participar de cursos de ensino médio, superior e profissionalizante ficarão fora o tempo necessário para essas atividades educacionais.
O direito à saidinha existe desde 1984, quando a Lei de Execução Penal entrou em vigor.
Quem tem direito à saidinha?
Condenados cumprindo o regime semiaberto têm direito ao benefício da saidinha.
Hoje, há 118 mil detentos no país que cumprem pena no semiaberto, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais — mas nem todos estão aptos à saidinha. Outros 336 mil estão presos no regime fechado.
Tanto pela lei anterior quanto pelo novo texto, para ter direito ao regime semiaberto, o preso deve ter cumprido 1/6 da pena, se for réu primário, ou 1/4, se já tiver sido preso antes.
O preso ainda deve ter um histórico de bom comportamento para ler liberado em uma saidinha.
Nos dias fora da prisão, o preso precisa permanecer na cidade indicada, estar na residência onde indicou como dormitório no período noturno e não pode frequentar bares, casas noturnas e “estabelecimentos congêneres”.
Como surgiu a proposta de acabar com a saidinha?
O projeto de lei que acaba com a saidinha foi proposto pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) e tramitava no Congresso desde 2011.
Nesses 13 anos, o texto passou por diversas comissões e alterações até ser votado e aprovado em agosto de 2022 na Câmara. Mas o texto teve que retornar à Casa em março após sofrer alterações no Senado.
Isso porque o projeto previa a extinção total do benefício, mas o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) propôs uma emenda, que foi aprovada, e o texto passou a permitir a saída dos detentos para fazerem os cursos.
A oposição ao governo petista no Congresso abraçou a proposta das saidinhas, e o Partido Liberal (PL), sigla do ex-presidente Jair Bolsonaro, conseguiu emplacar a relatoria tanto na Câmara quanto no Senado.
Além do deputado Guilherme Derrite, que foi exonerado do cargo de secretário de Segurança de São Paulo para ser relator da medida, o posto coube no Senado a Flávio Bolsonaro (RJ), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro.
O que diz quem defende o fim da saidinha?
Em defesa da medida, Guilherme Derrite afirmou à BBC News Brasil que é preciso “ter tolerância zero com quem comete crime no Brasil” e que a intenção é “defender a sociedade”.
“Bandido tem que cumprir pena, e o crime não pode ser lucrativo. O criminoso tem que ter receio de cometer um delito. Ele tem que saber que, se cometer, não vai ter privilégio”, disse.
Para ele, o benefício das saídas temporárias põe em risco a vida de milhares de pessoas no país, porque são pessoas que ainda não cumpriram completamente suas penas.
“É uma imoralidade, um absurdo, uma aberração jurídica que eu graças a Deus consegui acabar com ela.”
Ao argumentar a favor da medida, Derrite contestou o dado passado à BBC News Brasil pelo governo estadual de São Paulo de que uma pequena parcela dos presos não voltam para os presídios após as saidinhas.
“Eu vi a esquerda dizendo que só 5% não voltam. Só que 5% de 35 mil são muitos criminosos que não voltam”, diz, em referência ao número total de presos do Estado de São Paulo.
Para Derrite, esse número é significativo no longo prazo: “Eu tive o cuidado de fazer essa conta. Do ano de 2006 até 2023, foram mais de 128 mil criminosos que não voltaram para os presídios no Brasil”.
Na saidinha de Páscoa, por exemplo, entre 12 e 18 de março, foi autorizada a saída temporária de 32.395 presos em São Paulo, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Estado, dos quais 1.438 não retornaram, o equivalente a 4,4%.
Na capital paulista, dos 738 liberados temporariamente, 53 não voltaram, o que corresponde a 7,1%.
O que diz quem é contra o fim da saidinha?
O deputado Pedro Paulo argumentou, ao comentar a possibilidade de o benefício acabar, que a saidinha é importante para que um preso volte aos poucos a conviver em sociedade.
“A saidinha [tem que ser observada] sob esse aspecto da ressocialização ao ambiente comunitário, à sua família, à sociedade que ele vai conviver quando terminar a pena. Por isso, é um erro o projeto do jeito que está”, disse.
Por sua vez, o advogado Luís Felipe Bretas Marzagão, especializado em direito penal e direito processual penal, disse à reportagem que a extinção da saidinha impede que a ressocialização gradativa dos detentos seja feita.
Para ele, não há números que demonstrem a necessidade de eliminar a saidinha. Ele cita que menos de 5% dos presos não voltam do benefício em São Paulo.
“Nenhuma pesquisa aponta para uma necessidade de acabar com esse benefício”, diz Marzagão.
“Esta nova lei vai apenas prejudicar os presos que têm bom comportamento e querem progredir aos poucos.”
Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e segurança pública, também defendeu que a saída temporária é uma maneira de verificar se o preso está “evoluindo ou não no processo de ressocialização”.
“Se o preso sai e cumpre as regras de ficar na residência da família, não sair à noite, não ir em bares e casas noturnas, vai e volta nos dias e horários estabelecidos pelo sistema prisional, e não se envolve em brigas e em crimes, significa que ele está em processo de ressocialização, em preparação para retornar ao convívio social em liberdade”, disse à BBC News Brasil.
Há risco de presos se rebelarem com fim da saidinha?
A reportagem conversou com agentes penitenciários, detentos e associações de presos sobre a possibilidade de ocorrerem protestos e rebeliões a depender da decisão final sobre a manutenção ou ao fim da saidinha.
A maioria acredita que não haverá revoltas, mas não descarta definitivamente a hipótese.
Eles citam que a facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), em sua origem, foi criada com a proposta de defender os direitos dos presos, mas agora está mais preocupada com suas ações lucrativas, como o tráfico de drogas.
“Eles perderam essa ideologia ao longo dos anos”, diz uma fonte que já esteve presa durante anos e que ainda mantém contato constante com internos, mas pediu para não ser identificada.
“Hoje, a gente só verá uma possível revolta se isso surgir da própria massa carcerária, porque o partido [como é conhecido o PCC] não parece muito interessado.”